quarta-feira, 24 de maio de 2017

Agosto - Tributo

AGOSTO
Tributo

Oitavo mês do ano. Estação: inverno. Mês de Santo Afonso Maria de Ligório, São Benildo, São Ponciano, São Hipólito, Santo Agostinho e  das Senhoras. Nunca gostei muito do mês de agosto, sem motivo, sem nexo, talvez meramente por crenças ou ideias alheias que entram em nossa mente e nos apropriamos delas.

Agosto de 2009 chegou, não veio de mansinho veio já carregado. Veio avassaladoramente forte. Cheio de aniversários de amigos, nossa foram tantos que ficaria na miséria se tivesse que dar presentes a todos. Viva o Orkut. Veio também com cheiro de fim, de término. Agosto foi pesado.
Idas e vindas a aniversários e hospitais. Duas dualidades: Eros e Thânatos. Não há como escapar disto. Os aniversários foram tranquilos: 38 anos e 50 anos. Fora os outros que não pude ir, muito cansaço, muito trabalho e dois funerais. Além das visitas hospitalares, telefonemas, stress do que iria acontecer.

Sim foram dois funerais. Um inesperadamente, dia 24 de agosto, colega meu dos tempos de Colégio Pedro II, infarto, aos 42 anos. Rápido e ligeiro como foi a passagem de “Michael – Urubu Rei” pela terra, desta vez no São João Batista e o outro...

Agosto é inverno, representa a salamandra, pato selvagem e o fogo na lareira. A sucessão das estações, assim como as das fases da lua, marca o ritmo da vida, as etapas de um ciclo de desenvolvimento: nascimento, formação, maturidade e declínio. Cada uma delas representadas pelas suas estações: primavera, verão, outono e inverno. Inverno é thânatos. Tempo de declínio. Não é tempo de plantar nem de colher. É tempo de transformar e às vezes a transformação vem em forma de estiagem, de paisagem escura, de frio, de morte. Ciclo que se ajusta tanto aos seres humanos quanto a sociedades e civilizações. Ilustra, igualmente, o mito do eterno retorno. Simboliza a alternância cíclica e os perpétuos reinícios.

E foi justamente no inverno, que ela partiu. Partiu para “o ponto mais elevado do firmamento, aquele que miramos ao olhar diretamente para cima”. Pois este era o seu nome. E para os que acreditam: os nomes têm força, energia. E era para ir para o alto. Para o céu, para o Olimpo. Sim no Olimpo, pois segundo versões seu nome tem origem grega e significa: Dádiva de Zeus.

Zeus maior dos deuses do Olimpo, acima de tudo, para ela, onde está Jesus. Seu Mestre. Era nisso que acreditava. Todo o resto é poesia minha. Mulher guerreira e de fibra. Lutou a vida inteira contra as maldades do mundo e sobreviveu. Sobreviveu a uma infância difícil e depois a uma vida difícil. Formou-se, casou-se tarde para os nossos padrões, teve uma filha, foi ungida Pastora, ajudava a todos sem pestanejar. Gostava disto. A dor do outro era sempre mais importante que a dela. Largou a faculdade de psicologia para pagar a de uma outra pessoa e dizia que ia terminar para trabalhar comigo.

Teve um AVC e recuperou-se dele, onde muitos achavam impossível. Era sua fé. Descobriu um câncer de mama. Escreveu um livro. Adorava poesia e escrevia bem. Sempre colocando do papel suas histórias. Tinha o sorriso largo e forte, o abraço sincero e a voz macia. Era dura quando necessário. Não desanimava ou perdia as esperanças. Tinha fé. Uma fé inabalável.

Foi-se a primeira mama e com elas os cabelos e com ela um pouco da saúde, mas não da alegria ou da esperança. Chorava comigo e se recuperava. Também tinha medos: medo de morrer, de não se lembrar mais das pessoas. Dizia a ela que o importante era sentir as pessoas e que caso ela não se lembrasse mais das pessoas ela poderia senti-las. Ela saiu radiante do nosso espaço. Depois veio a notícia da retirada da segunda mama. Canudão não se abateu. Teve medo sim, mas foi lá enfrentar a sua guerra pessoal. No INCA, antes da cirurgia ela recitava poesias para acalentar o coração de outras mulheres que iam retirar a primeira mama. Ela conseguia levanta-las. E retirou a segunda mama.

Mas sua guerra nunca acabava. Era uma dor aqui, outra ali. E daí apareceu à morfina. As dores nos ossos não melhoravam e o medo de não mais escrever no micro? Seu segundo livro? Suas poesias e ideias como ficariam?

Canudão vinha para cá e chorava. E comíamos jujubas “escondidas” e às vezes lanchávamos. Ela adorava jujubas e doces. E quando estava muito triste me pedia para dar uns “mergulhos em seu coração” ou simplesmente me ligava para ouvir alguma coisa legal e melhorava.

Tinha uma legião de pessoas a sua volta que lhe davam forças: maridão, filhota, a irmã e que irmã, a mãe, o pai, os amigos e quantos bons amigos ela tinha. Cada um deles lhe trazia paz e lhe acalentava um pouco. A irmã, seu fiel escudeiro, cuidou dela o tempo todo. Dando-lhe remédios, comida, banho, levando-a a médicos, psicóloga, ficando literalmente internada junto com ela. Sua dedicação era total e a negação também.

Quando ela chegou em meu consultório pela primeira vez era o mês de maio, mês de seu aniversário. E havia algumas semanas que minha irmã havia falecido. Depois de alguns encontros contei a ela sobre minha irmã e ela me enviou um depoimento, entre tantos assim:

“Eliane, ou seja, Canudinho, nome que A DEI COM CARINHO. É uma grande mulher de um metro e meio de altura. Ou um pouco menos que isso. Possui uma alma que é transparente no seu olhar e sua voz “um Prazer imenso de ouvir a dor do Outro" e poder ajudar a levar cada um de nós a um momento de reflexão onde descobrimos que somos maiores que nossas dores, que com elas crescemos. Fala sobre a dor de uma maneira única, que nos encanta, e nos faz crescer, amadurecer e perceber que aquela dor que nos levou até seu consultório, só serviu para abrir nossos olhos, iluminar nosso caminho. Se entro triste, saio sorrindo do seu consultório. Se entro offline, saio online. Canudinho é uma pessoa tão amada e especial pra Deus, que quando ele a projetou colocou em seu coração o desejo de ajudar a humanidade, a entender que somos humanos e não super-heróis. Cheguei em seu com consultório quando fazia dois meses que sua irmã amada tinha sido colhida por Deus por causa de um câncer. E cheguei falando do meu câncer de mama."

"Com um olhar expressivo de quem sabia o que eu estava vivendo. Me ouviu, me ajudou e me fez sair do consultório bem melhor. Na terceira consulta ela disse: Quero te dar um presente: "quero te contar que minha irmã faleceu de câncer há dois meses" E isso me dói, sinto dor da saudade. Quero lutar com Você Zenith, PARA VENCERMOS ESSA DOENÇA. Eu fiquei pensando, só Deus para dar força e consolo para que Eliane possa cuidar de mim. A cada sessão, lá está ela com um sorriso e nas pontinhas dos pés para conseguir me dar um abraço. Canudinho tem uma pequena estatura, mas já tem dentro desse canudinho uma haste de aço, chamada Espírito Santo de Deus, que está arraigada a uma Pedra chamada Jesus Cristo. Por isso Canudinho é forte, para lidar com a maior de todas as dores que é a morte. Não tem vergonha de expor sua tristeza e saudade demonstrando assim a sua humanidade. O Plano de Saúde AMIL me levou até canudinho ... Canudinho te Amo.(13/08/08)”.

E nossa história só foi crescendo. Dentro de mim a verdade que ela estava partindo, que seu tempo aqui entre os mortais estava chegando ao fim. Ela sabia só não queria ouvir. Dizia-me que seu exame veio errado, que não havia metástases. E eu a ouvia e ficava feliz por ela, mas sabia que era uma mentira. Não que ela estivesse mentindo, mas os médicos realmente lhe diziam que o exame foi trocado ou não diziam o que era e sim a forma de proceder. Ela não perguntava, no fundo tinha medo de ouvir a verdade.

Apesar disto falávamos sobre tudo, inclusive sobre a morte. Ela tinha medo de morrer. E quem não tem? Queria criar sua filha, seu marido, terminar a faculdade de psicologia e trabalhar comigo. E ao mesmo tempo preparava a filha para o pior. Mulher inteligente, pastora ungida com uma psicóloga espírita, esotérica. Ela nunca se incomodou. Orava por mim e eu rezava por ela. Cada uma da sua maneira.

No final de julho, fui leva-la a um oncologista, pois em sua última internação antes deste dia ela havia ficado muito sensibilizada e não queria mais voltar para o INCA. Ela havia ido para a ala dos pacientes terminais e nos três dias que ficou lá viu muita coisa e a palavra terminal lhe roubava tudo o que ela tinha de mais importante: a esperança. Ela me fez prometer que não ia mais para o INCA. Disse a ela que a sua vontade seria feita. Ela também havia me pedido: “Canudinho, queria muito ver o mar, me leva para ver o mar? ”. E fomos à Copacabana, ela queira ver a praia. O dia estava chuvoso. Caminhamos até a areia e fomos pertinho do mar. Tiramos fotos. Ela agradeceu.

No hospital São Lucas, ela queria uma esperança, um novo tratamento, era isto que foi buscar. A médica muito gentil não disse o que ela queria ouvir e queria interná-la. Não foi grosseira ou nada, mas simplesmente não mentiu. Ela saiu de lá muito triste e fomos a outro hospital. Desta vez no Pasteur. Lá ela fez exame de sangue e o médico lhe falou de outra maneira e a esperança renasceu. Ele também não mentiu só disse que ela iria fazer isto e aquilo e que ficaria bem. Ficar bem para mim significava sofrer menos, cuidados paliativos, qualidade de vida. Para ela significava ficar boa mesmo que em seu inconsciente ela já não mais acreditasse nisso. Era o dia 31/07/2009.

E entrou agosto. E no dia 31 de agosto, exatamente um mês depois ela faleceu na Ordem Terceira as 11:20 da manhã com seu marido no quarto. No dia 01/09/2009 foi enterrada no Jardim da Saudade em Edson Passos. Levou junto de si uma borboletinha verde que pisca e uma plaquinha escrito: Deus é fiel. A borboletinha verde era do casamento de minha prima, de dezembro de 2007, última festa que minha irmã esteve e dançou. Ela faleceu em abril de 2008.

E certa vez eu disse para a Canudão que quando ela precisasse de mim era só acender a borboleta que eu iria correndo e a plaquinha foi a Reli que lhe deu no sábado em visita no hospital. Coloquei ambos junto ao seu peito e ela as levou consigo além das flores que adornavam seu esquife. Não joguei flores, mas sim dois canudinhos de plástico (mas com uma haste muito forte), foi a minha despedida.
Fiquei uma semana tentando escrever algo em sua homenagem, mas não conseguia e acho que ainda não consegui. Esta mulher me ensinou mais do que eu a ela. Hoje ela deve estar conversando pessoalmente com Jesus e eles devem estar tendo altos papos. Seus 50 anos de vida foram uma benção para todos que com ela tiveram o prazer de conviver, de trocar e-mails ou simplesmente mensagens no orkut.

Percebo que não importa o tempo que ficamos aqui, mas sim como passamos este tempo. Como crescemos e construímos algo de bom para nós e para os outros. Canudão vai com Deus, é etérea, é luz, é energia. Finalmente você pode conhecer a Elaine. Olha não dá muita bola para o que ela vai falar não, afinal de contas irmãs falam mal uma das outras, porém se amam. E o céu ganhou mais uma estrela! E a alternância cíclica e os perpétuos reinícios continuam.

Rio de janeiro, 05/09/09.

Eliane Pietroluongo Vianna


Bibliografia:
- Dicionário de Símbolos, Jean Chevalier & Alain Gheerbrant, José Olympio Editora, 6ª edição.

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